Lixo: de problema a negócio escalável
Obrigatória por lei, Gestão de resíduos sólidos passa a ser vista como negócio após fortalecimento da infraestrutura da reciclagem em um mercado que já movimenta R$ 12 bilhões
Quando foi instituída pela Lei nº 12.305, de agosto de 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi encarada como mais “um grande e indesejado componente do custo para se produzir no Brasil”, segundo a advogada ambientalista Sophia Bueno. Entre os pontos que mais desagradaram, segundo avaliação da advogada especializada em meio ambiente, Roberta Almeida, está o que tornou, a partir de 2014, as empresas responsáveis pelo lixo que produzem.
Desde então, toda indústria precisa coletar quantidade equivalente ao plástico, vidro, papel ou alumínio que coloca no mercado em forma de produto ou embalagem. Passados oito anos, o que era visto como custo se transformou em oportunidade. O lixo está sendo coletado, reciclado e reintroduzido na economia em um mercado que movimenta R$ 12 bilhões ao ano, valor estimado pela Associação Internacional de Resíduos Sólidos.
Realizado pelo Instituto Pragma, o Anuário de Reciclagem 2022 dá uma dimensão do tamanho da cadeia e de seus principais impactos sobre os recursos naturais. Sobre o volume, chama atenção que mesmo ao limitar os dados ao elo de recicladores, a cifra é bilionária. As 1.996 organizações de catadores, que possuem 59.609 trabalhadores, faturaram juntas R$ 1,6 bilhão no ano passado. Para Dione Manetti, presidente do Pragma, os números refletem dois movimentos que estão se fortalecendo. O primeiro é a mudança da relação da sociedade com o lixo. “Durante a pandemia, a conscientização das pessoas de que os resíduos eram um problema aumentou significativamente.” O segundo tem relação com as empresas. Com o isolamento social durante a crise sanitária, os catadores reduziram suas atividades, dificultando a gestão de resíduos imposta pela lei a alguns setores econômicos. “O setor industrial passou a valorizar o trabalho das cooperativas.”
MODA CIRCULAR
Já os dados sobre o impacto começam a dar uma dica do motivo pelo qual as empresas começaram a enxergar a PNRS com olhos mais ambiciosos. Para se ter ideia, as 195,4 mil toneladas de papel recicladas em 2022 representaram economia de 685,9 milhões de kWh de energia, de 5.706 milhões de litros de água e manutenção de 3,9 milhões de árvores em pé. Segundo o presidente da Coopercap, cooperativa que atua em São Paulo com 350 catadores e que movimenta 2 mil toneladas de resíduos por mês, esse ganho já está sendo contabilizado. “A demanda por serviços de gestão de resíduos pela iniciativa privada aumenta significativamente”, disse. Grandes marcas já deixaram de ver o lixo como custo, para enxergá-lo como receita.
SUBSTITUIÇÃO
A bem da verdade, transformar resíduos não é novidade. A prática é antiga, seja por tradição, como em comunidades indígenas, ou por pequenos negócios com foco em nichos de mercado. O movimento mais recente, no entanto, está sendo comandado por corporações globais que começaram a investir na substituição de matérias-primas primárias por recicladas, em uma estratégia escalável. Na lista, empresas como a indústria de latas de alumínio Ball, a Coca-Cola, a Tramontina e a Chilli Beans.
Autodeclarada a maior produtora global de embalagens sustentáveis, a Ball produz 110 bilhões de latas de alumínio reciclado por ano no mundo. Atuando no Brasil desde 1989 e com reciclados desde 1991, encontrou aqui espaço para crescer. Hoje, segundo o seu diretor de Sustentabilidade, Estevão Braga, a empresa tem 50% do mercado doméstico que produz 33 bilhões de latas do tipo. O custo explica o apetite. “O preço do alumínio primário é cotado na bolsa de Londres e se move pela lei da oferta e demanda”, disse. “Já a opção reciclada é mais estável.” Enquanto o primeiro tem preço de cerca de R$ 12 mil a tonelada, o segundo é de R$ 6 mil. Atualmente, cerca de 75% do corpo das latas da Ball é composto por material reciclável. A meta é chegar a 85% em oito anos.
Também consumidora de latas com alumínios, o principal desafio da Coca-Cola é o plástico PET usado em suas garrafas de refrigerantes e água. A agenda ganhou tanta relevância que a marca lançou há cinco anos o programa global Mundo Sem Resíduo. As metas são tão audaciosas quanto garantir que 100% das embalagens sejam recicláveis até 2025; que 50% de todas as embalagens sejam produzidas de conteúdo reciclado até 2030; além do compromisso de dar destinação adequada ao equivalente a cada embalagem que coloca no mercado até 2030. Vale a informação de que no ano passado das 313 mil toneladas de PET consumidas pela Coca-Cola Brasil, 20,2% foram de insumos reciclados. Meta estabelecida, a empresa corre para superar obstáculos que não são simples, segundo o gerente sênior de Sustentabilidade do Cone Sul na Coca-Cola, Rodrigo Brito. “Não há produção de reciclados para atender toda a demanda”.
TRABALHO CONJUNTO
Brasil tem 1.996 cooperativas com 59,6 mil catadores e há ações específicas como a Recicla Solar que recolheu 2 milhões de toneladas de resíduos durante evento em Salvador trabalhadores, faturaram juntas R$ 1,6 bilhão no ano passado.
Obter matéria-prima reciclável em escala obrigou a companhia a criar estratégias para participar de programas setoriais de apoio à cadeia, como o Reciclar pelo Brasil, e criar os próprios, como o Sustenta PET, o Recicla Solar e o Andina. Na soma, os três coletaram mais de 60 mil toneladas. Para Brito, o esforço se traduz em resultados na redução de custos, cumprimento de compromissos ambientais, reputação além de garantir o futuro. “Sabemos que embalagem sem circularidade vai inviabilizar nosso negócio.”
Tudo isso conta, claro, mas no caso da Tramontina a grande motivação, segundo o diretor Marcos Grespan, veio do mercado. “Oferecer produtos reciclados e recicláveis passou a ser uma exigência”, afirmou. A empresa, que já tinha feito alguns pilotos, acaba de lançar a LYF, primeira linha feita com insumos sustentáveis. “Estamos falando em linha comercial de alta escala.” Ela consumiu mais de dois anos de desenvolvimento, R$ 2 milhões em investimentos e foi lançada na feira Ambiente, realizada de 3 a 7 de fevereiro, na Alemanha. “É a feira mais relevante para a indústria global, por isso a escolhemos”. Panelas, facas e talheres são feitos com cabos de plástico reciclado e aço 100% reciclável. As embalagens seguem o mesmo princípio.
NOVA GERAÇÃO
Da mesa à moda, ao contrário da Tramontina, a Chilli Beans não é novata nesse mercado. Começou há cinco anos, quando o filho do fundador Caito Maia o colocou na parede. “Ele tinha 9 anos e me perguntou o que eu estava fazendo para cuidar do planeta”, disse Caito. “Nada.” Constrangido, o executivo agiu e começou a incluir matéria-prima reciclada nos cases e acessórios da marca. No início em coleções limitadas. Agora tem como meta ter 30% de todo o seu portfólio com material reciclado até o fim do ano. “Só de cases, serão 4 milhões de peças de material biodegradável”. A projeção é que até 2025 todos os produtos da marca sejam produzidos a partir de tecnologias como o capim prado — bagaço de planta manipulado —; lixo coletado no oceano; e injetado ecológico — tipo de plástico reciclável.
Rumo à sustentabilidade, não há antagonia. Qualquer rivalidade é deixada de lado em iniciativas para que o lixo seco deixe de ser problema e passe a ser mais uma linha no abatimento de custos e, melhor ainda, nova fonte de receita.