Brasileiro se diz disposto a reciclar, mas esbarra em infraestrutura
No Brasil, somente 4% das 76 milhões de toneladas de lixo recolhidas a cada ano são para reciclar, conforme dados da Abrelpe, associação das empresas de limpeza pública. Segundo especialistas, os obstáculos estão, na maioria das vezes, ligados à falta de vontade política para realizar investimentos em estruturas de reaproveitamento e para conscientizar a população.
Uma pesquisa da Nestlé apontou que 84% dos brasileiros dizem separar os recicláveis do lixo orgânico “com frequência”, mas a infraestrutura ainda é um dos desafios para que essa decisão tenha números mais concretos.
Metade dos entrevistados que não reciclam aponta a deficiência de infraestrutura e prestação de serviços para o descarte adequado como motivos para não fazê-lo. Mesmo a separação que é feita tem limitações. É costume separar vidros, metais, plásticos e material orgânico. Mas o universo de recuperáveis é mais vasto. Inclui eletrônicos e pilhas, para citar poucos exemplos, que acabam sendo descartados em lixo comum.
“É mais difícil que as pessoas se mobilizem se precisam procurar onde descartar. Tanto é que os itens mais reciclados são justamente os materiais-alvo dessas iniciativas particulares, como as latas instaladas em condomínios”, avalia Priscilla Caselatto, gerente de consumer & market insights na Nestlé. O estudo será utilizado para desenhar iniciativas de sustentabilidade.
As grandes marcas têm papel relevante no sistema, já que distribuem produtos aos consumidores em embalagens de plástico, papel, vidro etc. Elas precisam obter parte das matérias-primas por meio de práticas regenerativas via logística reversa, o que é estabelecido por leis federais e estaduais.
“O Acordo Setorial Fase 1, um instrumento para execução da Política Nacional de Resíduos Sólidos, definiu um conceito que chegou a 22% da massa total de embalagens colocadas pelas empresas [no mercado] ao longo do ano”, reitera Erich Burger, diretor do Instituto Recicleiros, organização da sociedade civil que fomenta o ecossistema da reciclagem no país.
Há especificidades definidas por Estados, entes que podem ser até mais exigentes ou específicos do que os federais. Ademais, os volumes a recuperar no sistema de logística reversa devem agora crescer progressivamente até 2040, conforme o Plano Nacional de Resíduos Sólidos publicado no ano passado. Ele integra a Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010.
Para além do ganho de conscientização das pessoas e iniciativas das indústrias para responder à legislação, há “gaps” que precisam ser resolvidos com urgência em outros elos da cadeia. Um deles é desenvolver coleta municipal e, outro, estruturar a “indústria da reciclagem”, na avaliação de fontes. O Brasil tem cerca de 2 mil organizações de catadores mapeadas, e nelas, 60 mil profissionais, aponta o “Anuário da Reciclagem”.
Mas este é apenas um recorte. Fontes do meio estimam que pelo menos 1 milhão de pessoas trabalham com reciclagem no país, muitas delas fora de estruturas organizadas. A renda média estimada mensal pode variar entre R$ 600 e R$ 1,5 mil.
Apesar das iniciativas espalhadas em cerca de 75% dos municípios brasileiros (muitas ainda pontuais nas cidades), o volume de lixo recuperado no país não passa de 4% das 76 milhões de toneladas recolhidas a cada ano. O desafio está muitas vezes ligado à vontade política para fazer investimentos e comunicação, dizem especialistas.
O Instituto Recicleiros, por exemplo, assessora prefeituras interessadas em ter coleta seletiva. Como a ONG também faz investimentos, seu modelo de trabalho é criterioso, diz seu dirigente. Os prefeitos interessados em instalar a política pública passam por um programa seletivo. “Eles [prefeitos] têm que entregar uma série de pré-requisitos que mostrem engajamento suficiente. Depois de cumpridas algumas etapas e após publicada a lei, investimos para estruturar a cooperativa”, conta Burger.
São aportados cerca de R$ 5 milhões por cidade em aproximadamente cinco anos de trabalho. Os recursos não vão para cofres públicos e são utilizados para criar a central de reciclagem do município. A ideia é que as pessoas se tornem empreendedoras e comandem o negócio ao atingir maturidade, para que a cooperativa não fique à mercê de desmandos políticos locais.
Paralelamente, o poder público municipal investe na prestação de serviço de coleta pública, com assessoria técnica da ONG, que capta recursos das grandes marcas e de fundos institucionais. Hoje, a iniciativa ocorre em 14 municípios de pequeno e médio portes, como São José do Rio Pardo (SP), Jijoca de Jericoacoara (CE), e Ji-Paraná (RO). O objetivo é alcançar 60 cidades até 2028.
Pedro Maranhão, dirigente da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema), representante das companhias de manejo de resíduos, conta que as gestoras dos aterros sanitários também conduzem iniciativas para separar materiais. Mas para ele, a reciclagem seguirá a passos lentos enquanto não houver organização setorial.
“Precisa existir uma indústria da reciclagem, como setor organizado da economia, com direitos aos trabalhadores. Se não, não há quem recicle”, diz. A força de trabalho na reciclagem é instável. “Quando a economia melhora, esses trabalhadores preferem outras ocupações com melhor renda”, avalia.
Neste ano, por exemplo, os preços dos materiais estão em baixa, diz Maria Tereza Montenegro, presidente Cooper Viva Bem, localizada na zona oeste da capital paulista. “Tem muita oferta e pouca gente querendo [comprar os reciclados] porque todo mundo já abasteceu estoques. E vem material de fora do país também”, afirma. Ela conta que em 2005 a cooperativa vendia o papelão a quase o mesmo preço atual. “Mas hoje o poder de compra é outro”, diz a dirigente.
O governo federal anunciou em julho deste ano o aumento do imposto de importação cobrado sobre papel, vidro (zero) e plástico (11,2%) para 18%, visando incentivar a reciclagem. Montenegro acredita que os efeitos da medida só poderão ser avaliados a partir de março do ano que vem, com a redução dos estoques. O faturamento das 2 mil organizações de catadores mapeadas no Brasil (apenas uma parcela desse universo) em 2022 chegou a R$ 1,5 bilhão, segundo o “Anuário da Reciclagem”.
A receita das cooperativas deve subir um pouco por meio da negociação de um mecanismo batizado como Certificado de Crédito de Reciclagem, lançado também no ano passado pelo governo federal para incentivar a recuperação de materiais aproveitáveis. As empresas que não conseguem obter o total do que precisam por meio da logística reversa podem comprar os créditos em cooperativas. A ferramenta precisa de ajustes, opina Maranhão, da Abrema, e há diálogo em curso com o atual governo.
O Brasil tem problemas em etapas anteriores à do debate sobre a reciclagem. Até hoje existem no país cerca de 3 mil “lixões” a céu aberto – locais onde o lixo (orgânico e reciclável) é descartado de forma incorreta, ou seja, sem tratamento adequado no solo. Há meta governamental para eliminá-los até 2024. Para uma fonte, é possível avançar, mas eliminação dos “lixões” não vai acontecer nesse prazo”. O “lixão” difere dos aterros sanitários, que são estruturas preparadas corretamente para o descarte.
Em municípios onde há coleta seletiva, o material reciclável recolhido separadamente do orgânico é destinado às cooperativas de recuperação. A destinação inadequada de resíduos sólidos urbanos nos “lixões” causa poluição da água, solo, flora, fauna e emissões de gás carbônico. Além disso, afeta a saúde da população em um raio de abrangência que pode chegar a 60 km no entorno.
Um estudo da Abrelpe (agora integrante da Abrema), do ano passado, estima que o gasto para tratar de problemas gerados à saúde entre 2016 e 2021 chegou a US$ 1,9 bilhão. O mesmo estudo indica que serão necessários ao menos R$ 30 bilhões de investimentos para que o país alcance a universalização da destinação final ambientalmente adequada de resíduos sólidos urbanos seguindo as metas do governo federal.